Fusão de Núcleos Pesados - IFUSP - FNPe -


Resumo do trabalho do grupo 

As pesquisas desenvolvidas pelo grupo de Fusão de Núcleos Pesados englobam duas situações extremas: a fusão de núcleos com velocidade relativa muito baixa, através de um tunelamento quântico, e a "fusão" de núcleos com energias cinéticas centenas de vezes maior do que a barreira coulombiana. Estas colisões violentas produzem em laboratório pequenas "gotas" de matéria nuclear em situações limite de energia e temperatura, como as que encontramos no centro de grandes estrelas na fase final de suas vidas. Esses estudos fornecem parâmetros (compressibilidade da matéria nuclear, secção de choque nucleon-nucleon dentro do núcleo, etc) que são ingredientes fundamentais para os modelos astrofísicos que prevêm a evolução das estrelas. Esse trabalho é realizado no seio de uma cooperação de laboratórios internacionais, principalmente da França, Itália, Estados Unidos e Alemanha. No outro extremo de energia, o trabalho do grupo tenta compreender o processo responsável pelo "amadurecimento" das estrelas, que é a fusão nuclear em energias muito baixas. No início de seu ciclo de vida, as estrelas são constituídas por núcleos muito leves que, atraídos pela força gravitacional, formam uma região extremamente densa. A temperatura aumenta permitindo colisões nucleares suficientemente energéticas para iniciar a fusão subcoulombiana, processo puramente quântico denominado nucleosíntese. Esse processo cria núcleos cada vez mais pesados e promove o "crescimento" e desenvolvimento dessas estrelas. Essa pesquisa é desenvolvida inteiramente no Acelerador Pelletron da Universidade de São Paulo. Além disso, lançando mão dos detectores desenvolvidos para os estudos acima, o grupo utiliza as baixas energias disponíveis no Pelletron para intensificar as pesquisas na área de física atômica, principalmente a interação da radiação com a matéria. Por outro lado, a instalação do acelerador LINAC permitirá ao grupo FNPe participar mais ativamente numa cooperação internacional de produção de núcleos super-pesados e de núcleos exóticos, núcleos fora da linha de estabilidade.


1) Introdução: 

Física Atômica versus Física Nuclear Estamos comemorando os 100 anos da Mecânica Quântica e, com ela, da Física Atômica moderna. Podemos dizer que as propriedades dos átomos estão completamente entendidas. A natureza das forças de interação no sistema atômico é bem conhecida e a Mecânica Quântica desenvolveu técnicas para avaliar os seus efeitos. Nesse tratamento, o núcleo é quase sempre incluído apenas como o centro puntiforme portador de massa e de carga positiva. Mesmo no caso da estrutura hiperfina, rara situação em que há uma manifestação de outra propriedade nuclear (momento de dipolo nuclear) interagindo com os elétrons e alterando os níveis de energia atômicos, a teoria consegue explicar os espectros atômicos com alta precisão.
No entanto, o sucesso da Mecânica Quântica não se repete com o núcleo, esse sistema de muitos corpos interagindo através de forças muito intensas (se comparadas à força eletromagnética) e de curto alcance (aproximadamente 10-15m). Não há uma teoria bem estabelecida do núcleo a partir da qual todas as suas propriedades possam ser deduzidas de uma interação fundamental. Nem mesmo a natureza da força nuclear está completamente estabelecida. Além disso, para complicar ainda mais a situação, o caráter forte da força nuclear dificulta enormemente a aplicação da teoria (pode até ser que a inviabilize!) e dos métodos perturbativos. Os grandes avanços realizados até agora na Física Nuclear se baseiam em alguns modelos que dão conta de inúmeras propriedades nucleares, mas que estão longe de ter o sucesso da teoria atômica. Por tudo isso, depois desses 100 anos, e apesar das enormes conquistas, o núcleo atômico é ainda um grande desafio teórico e experimental, um laboratório extremamente instigante para testarmos os princípios e os limites da Mecânica Quântica.
Por outro lado, o núcleo atômico usado como projétil é uma ferramenta essencial em vários domínios, conforme já apresentado em outros seminários deste Curso de Verão. Por exemplo, o processo da nucleosíntese ocorrida no Universo primitivo, responsável pela existência de todos os elementos mais pesados do que o hidrogênio e mais leves do que o ferro, só pode ser compreendido à luz da fusão nuclear em energias muito baixas, num processo essencialmente quântico de tunelamento. Portanto, o estudo da fusão nuclear sub-coulombiana, por ser um processo puramente quântico, serve como teste direto dos princípios básicos da Mecânica Quântica e, ao mesmo tempo, seus resultados são fundamentais para a Astrofísica Nuclear.
Devido à intensidade das forças lá existentes, o ambiente nuclear é dominado por processos altamente energéticos, da ordem de um milhão de vezes maiores do que os processos atômicos (MeV). Assim como ocorre com o átomo, para estudar um núcleo devemos excitá-lo de alguma maneira e medir os seus modos de decaimento. A dificuldade do caso nuclear é que a sua excitação exige interações igualmente intensas. Por isso, as reações nucleares ainda desempenham um papel fundamental no estudo do núcleo, para cujo descobrimento Rutherford utilizara o espalhamento  (5.3 MeV) + 197Au. Oito anos mais tarde, em 1919, ele mesmo demonstrou a existência dos prótons com outra reação  (7.7 MeV) + 14 17O + 1H . Numa outra experiência, realizada em 1932 por Chadwick, o nêutron foi descoberto por mais uma reação nuclear  (5.3 MeV) + 9Be  12C + 0n. Desde então quase todos os avanços no conhecimento do núcleo atômico foram proporcionados por reações envolvendo um núcleo e uma partícula (próton, nêutron, ou elétron), ou um outro núcleo. Portanto, foi necessário desenvolver uma teoria especial das reações nucleares, e esta constitui uma das grandes conquistas da Física Nuclear.
Neste trabalho tentaremos descrever em linhas gerais os modelos nucleares, a teoria das reações e, finalmente, exemplificar as pesquisas com núcleos pesados que podemos desenvolver no Acelerador Pelletron da Universidade de São Paulo.

2) O Núcleo Atômico

Do ponto de vista fundamental, há uma enorme diferença entre o tratamento quântico do átomo e o do núcleo. No átomo, os elétrons estão aprisionados por um campo de força de longo alcance, elétrica, cujo centro se encontra muito distante. No núcleo são os próprios nucleons que, para manter a estabilidade do sistema, se atraem com uma força nuclear de características ainda não totalmente conhecidas. O centro de forças se encontra dentro do sistema. Por isso, num tratamento rigoroso de um núcleo com 50 partículas, a hamiltoniana teria, para levar em conta a interação mútua entre todas elas, algo em torno de 50! termos, ou seja, 1064 interações fortes. Então, esse tratamento rigoroso deveria primeiro descobrir exatamente o potencial de interação nucleon-nucleon e depois resolver esse insuportável conjunto de equações acopladas. Se hoje essa tarefa é ainda impossível, imagine há 70 anos atrás.
A situação nuclear é semelhante ao tratamento microscópico clássico de um gás: podemos até escrever as equações de movimento das moléculas, mas somos incapazes de resolvê-las exatamente. E, talvez, isso nem tenha interesse, pois as soluções devem ser tão complexas que não saberíamos interpretá-las. Para contornar essa dificuldade, a Termodinâmica descobriu que, apesar da complexidade do sistema, umas poucas variáveis macroscópicas (P,V,T) apresentam comportamentos muito simples e caracterizam perfeitamente o gás. Além disso, a Teoria Cinética dos gases, com umas poucas hipóteses simplificadoras, conseguiu dar uma interpretação microscópica para essas grandezas macroscópicas. E esse foi o caminho seguido pelos primeiros desbravadores do núcleo. Utilizando um pequeno número de parâmetros, procuramos compreender as características de todos os núcleos existentes e daqueles que continuamos a construir em laboratório. As características estáticas dos núcleos são descritas pelas grandezas: massa, carga elétrica, raios, deformação, energia de ligação, momento angular, paridade, momento de dipolo magnético, momento de quadrupolo elétrico e energia dos estados excitados. Além dessas propriedades estáticas, há ainda as propriedades dinâmicas, tais como as probabilidades de decaimento e as probabilidades das reações.
Hoje, os maiores desafios enfrentados pelos físicos nucleares são:

  1. compreender os comportamentos estáticos e dinâmicos de todos os núcleos existentes;
  2. criar novos núcleos (exóticos e/ou superpesados) e verificar se eles acompanham o comportamento dos elementos naturais;
  3. compreender os mecanismos que governam as diferentes reações nucleares e, em particular, aquelas envolvidas na evolução das estrelas;
  4. aprimorar os modelos nucleares fenomenológicos;
  5. determinar com precisão os detalhes da interação nucleon-nucleon;
  6. avançar cada vez mais na direção de uma descrição microscópica fundamental do núcleo atômico;
  7. aprofundar nosso conhecimento da estrutura dos constituintes do núcleo, ou seja, das partículas elementares.

2.1) A força entre nucleons

A Física Atômica surgiu e se estruturou com o estudo das transições eletromagnéticas entre os estados excitados do átomo mais simples da natureza, o hidrogênio. Por analogia, deveríamos esperar que as transições eletromagnéticas do sistema nuclear ligado mais simples da natureza, o núcleo de deutério (2H), pudesse também fornecer a base experimental para a determinação da interação nucleon-nucleon. Infelizmente, para tornar a vida do físico nuclear mais emocionante, o núcleo de deutério, não possui estados excitados. Ele é um sistema fracamente ligado (2.22 MeV) cujos "estados excitados" consistem em um próton e um nêutron livres. Isso significa que se a força nuclear fosse um pouco mais fraca mesmo o estado fundamental do deutério existiria. Se o 1H não pudesse formar o 2H, não teria ocorrido o ciclo próton-próton de fusão nas estrelas, assim como não teria existido a nucleosíntese no Universo primitivo e nenhum elemento mais pesado do que o hidrogênio teria existido. Ou seja, se a força nuclear fosse um pouquinho mais fraca não estaríamos aqui para discuti-la, seríamos nuvens de H2 vagando pelo Universo. Mas como isso não aconteceu, lançamos mão de outro método para investigar a interação nucleon-nucleon. O método experimental inicialmente empregado para este fim foi o espalhamento de um nucleon por outro nucleon. Com inúmeras experiências p+p, n+p e n+n foi possível levantar o perfil da força nuclear fundamental. Hoje, sabemos que a interação entre dois nucleons:

  1. consiste de um potencial central atrativo;
  2. é fortemente dependente do spin;
  3. possui um termo não-central chamado potencial tensorial;
  4. tem simetria de carga;
  5. é aproximadamente independente da carga;
  6. pode depender da velocidade relativa dos nucleons (spin-órbita); e
  7. torna-se repulsiva para distâncias muito pequenas.
Com todas essas características qualitativas obtidas das experiências, as quais podem ser simuladas com potenciais fenomenológicos, podemos reproduzir os resultados experimentais, mas sem obter nenhuma indicação da origem profunda dessa força nucleon-nucleon. Ou seja, assim como a força elétrica se origina da troca de fótons virtuais entre as cargas em interação, seria a força nuclear produzida por troca de alguma partícula? O espalhamento de prótons por nêutrons, detectados em ângulos traseiros, e a saturação da força nuclear são fortes indícios da existência da troca de 'alguma coisa' entre os nucleons. Veremos no curso que, antes mesmo da descoberta dessa partícula, a Teoria da Relatividade e o Princípio da Incerteza forneceram a massa provável dessa partícula, o méson , e a forma do potencial de interação que resulta dessa troca, chamada de OPEP de Yukawa (one-pion exchange potencial).

3) Modelos Nucleares

Do ponto de vista da Mecânica Quântica, estaríamos em condições de resolver qualquer núcleo constituído de A nucleons se conhecessemos o potencial de interação entre as partículas que o compõem. Bastaria resolver a equação de Schrödinger. Como vimos na Introdução, é aí que começam os problemas. O primeiro é de ordem matemática: como resolver o problema de muitos corpos? Mesmo se simplificássemos o potencial, um poço quadrado por exemplo, não conseguiríamos resolver analiticamente o conjunto de equações acopladas e teríamos que recorrer a métodos numéricos. Outra dificuldade é a própria força nuclear. Existe evidência de que dois nucleons dentro de um núcleo não interagem apenas com uma força mútua de dois corpos, mas também com uma força de três corpos. Isto é, a força num nucleon 1 não depende apenas das posições individuais de outros dois nucleons 2 e 3, ela contém uma contribuição adicional que surge da correlação das posições de 2 e 3. Essa força não tem análogo clássico.
Com todas essas dificuldades, um tratamento microscópico mais obscurece do que ilumina a física do núcleo atômico. Sem abdicar das pesquisas para superar tais dificuldades, optou-se por um caminho deliberadamente simplificado mas que fornece resultados fisicamente compreensíveis. E o que é mais importante, reproduz uma enorme quantidade de resultados experimentais. Trata-se dos modelos nucleares. A teoria atômica baseada num Modelo de Camadas teve um grande sucesso na compreensão de detalhes complicados da estrutura atômica. Nesse modelo, as camadas são preenchidas com elétrons em ordem crescente de energia e satisfazendo o Princípio de Pauli. Quando isso é feito, obtém-se um caroço inerte de camadas preenchidas e alguns elétrons de valência, os quais determinam as propriedades atômicas básicas. Esse modelo fornece um impressionante acordo com a experiência.
A transposição desse modelo para o universo nuclear apresenta algumas dificuldades. Uma já foi citada anteriormente: diferentemente dos elétrons que se movem sujeitos a uma força "externa", os nucleons se movem sujeitos a um potencial criado por eles mesmos. Outro problema evidente é a existência de órbitas espaciais, nas quais os elétrons se movem relativame te livres de colisões com outros elétrons. Ao contrário, os nucleons tem raio da ordem de 1 fermi e habitam às dezenas comprimidos em núcleos cujos raios variam entre 5 e 10 fermi! Como imaginá-los movendo-se em "órbitas" bem definidas nesse espaço tão reduzido?
No entanto, a natureza sempre nos surpreendente. Há inúmeras evidências experimentais de que os nucleons se organizam em camadas, mesmo no espaço reduzido de que dispõem. Os números mágicos que definem as camadas fechadas de prótons e de nêutrons foram experimentalmente determinados e são 2, 8, 20, 28, 50, 82 e 126. Então, independente de nossa dificuldade de compreender espacialmente como isso pode ocorrer, a experiência permite que assumamos a hipótese de que cada nucleon move-se num potencial médio criado por todos os outros da mesma espécie. É claro que a existência de órbitas espaciais dependem do princípio de Pauli. Nas camadas mais profundas, onde as colisões seriam mais frequentes, elas são inibidas porque os níveis superiores estão todos completos e não aceitam receber um nucleon excitado por uma colisão, a qual não fornece energia sufuciente para levá-lo até as camadas mais externas. Portanto, os nucleons orbitam como se fossem "transparentes" entre si. Essa noção de "órbita" não é apenas uma conveniência para analisar os dados experimentais perto da superfície nuclear. Experimentos recentes demonstraram que ela é uma representação válida do comportamento dos nucleons através do núcleo.
Com seus ingredientes simples o Modelo de Camadas consegue prever razoavelmente bem, para a maioria dos núcleos conhecidos, o spin e a paridade, o momento de dipolo magnético, o momento de quadrupolo elétrico, os estados excitados e as probabilidades de transição entre estados. Resultado surpreendente, sem dúvida, em se tratando de um sistema tão inóspito.
Uma das limitações desse Modelo de Camadas está no tratamento da estrutura dos núcleos par-par, os quais apresentam propriedades gerais ao longo de toda a região de massa, independente do particular estado a ser ocupado. Tais propriedades não estão associadas com o movimento de alguns nucleons de valência, mas em vez disso com o núcleo inteiro. Tais propriedades são conhecidas como propriedades coletivas e suas origens estão no movimento nuclear coletivo (vibração ou rotação), para o qual muitos nucleons contribuem conjuntamente. Em média, a vibração é responsável pelo comportamento de núcleos com A<150, enquanto a rotação responde pelas características coletivas do núcleos na região de massa 150230. Algumas dificuldades aparecem quando resolvemos a equação de Schrodinger com um potencial não-central. Uma delas é que o momento angular orbital não é mais um "bom" número quântico e não podemos mais utilizar a notação espectroscópica (s, p, d, ...). Apesar disso, esse Modelo Coletivo foi desenvolvido por Nilsson e teve grande sucesso na predição da estrutura de níveis de núcleos deformados.

3) Reações entre núcleos pesados.

Uma vez superadas as dificuldades na explicação das propriedades estáticas dos núcleos, precisamos nos defrontar com outro problema importante: a interação entre dois núcleos diferentes. As centenas de núcleos pesados que existem na natureza praticamente nunca entram em contato entre si com as temperaturas existentes no sistema solar. A causa desse isolamento nuclear é a enorme repulsão elétrica (coulombiana) que surge entre eles quando se aproximam a distâncias da ordem dos raios nucleares. Por exemplo, a energia necessária para colocar em contato dois núcleos de urânio é, aproximadamente, 1500 MeV, isto é, 6.3 MeV/nucleon, correspondendo a uma velocidade de 12% da velocidade da luz ou, ainda, uma temperatura de 1013 K. Então, a primeira dificuldade dessa empreitada é conseguir colocar dois núcleos em contato, e de preferência com alta velocidade relativa. Os aceleradores nucleares hoje existentes cumprem muito bem este papel. Por exemplo, o acelerador Pelletron do Instituto de Física da USP fornece feixes nucleares de energia da ordem de 5 MeV/nucleon (para 16O). Com isso, podemos provocar reações nucleares altamentemente energéticas, em sistemas não muito pesados, e estudar os modos de interação entre dois núcleos, tais como, espalhamento elástico, excitações coulombiana e nuclear, reações de transferência de nucleons e a fusão completa dos dois núcleos.
Do ponto de vista teórico, os desafios teóricos ainda são imensos para a compreensão dos mecanismos de reação. Um tratamento totalmente microscópico do problema é ainda mais complexo do que a solução de um núcleo isolado. Devemos ainda lançar mão de modelos para simplificar os calculos. Um dos objetivos deste curso é discutir os dados experimentais e os modelos empregados para explicá-los.

Bibliografia

  1. A. Bohr and B.R. Mottelson, Nuclear Structure, 1975.
  2. B.L. Cohen, Concepts of Nuclear Physics, 1971.
  3. K.S. Krane, Introductory Nuclear Physics, 1988.
  4. IFUSP-FNPE

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